Crítica: “Coringa”

“Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”. Talvez a frase do filósofo alemão Friedrich Nietzsche consiga passar uma pequenina ideia do que acontece com o protagonista de “Coringa” (Joker), aguardada produção dirigida por Todd Phillips, que surge como a possível precursora de títulos do selo DC Dark para os cinemas e apresenta uma nova e totalmente convincente origem para um dos (em minha opinião, o melhor) mais populares vilões dos quadrinhos e da cultura pop em geral.

Ainda que haja diversos filmes de extrema qualidade no gênero – reconhecidos pela maior parte do público e crítica -, classificar o longa como “apenas” uma produção baseada em quadrinhos seria resumi-lo de maneira pouco justa. A história de origem mais famosa, mas não considerada oficial, mostrada em “A Piada Mortal”, flerta com o exagero fantasioso (qual a real probabilidade de um ser humano sem super-poderes sobreviver a uma queda com imersão total em um tonel de ácido?) e em nada se assemelha ao levado à tela.

A trama nos apresenta Arthur Fleck (Joaquin Phoenix em interpretação merecedora de todos elogios e prêmios), uma figura comum entre tantas que vivem na decadente Gotham City. Assim como a cidade, o personagem também enfrenta toda sorte de problemas e parece não ter forças suficientes para combatê-los.

Do bullying praticado por adolescentes mesquinhos que consideram seu trabalho como palhaço animador de porta de lojas de bairro algo a ser ridicularizado, ao desinteresse visível da assistente social que o atende sem nunca enxergá-lo como algo mais do que uma estatística. Da vida miserável que leva ao lado da mãe doente ao fracasso que permeia sua desejada carreira como comediante de stand-up. São inúmeros elementos que levam o protagonista a entrar em uma espiral cada vez mais profunda de dor e loucura.

Some-se a esses fatores externos o incomum distúrbio que faz Arthur gargalhar em momentos inapropriados e o coloca em situações que vão de embaraçosas a temerárias. Este, aliás, é um dos pontos altos do filme, quando percebemos todas as nuances de suas risadas que transitam da clássica satisfação ao desespero absoluto, quando o personagem parece sufocar-se física e emocionalmente – o que causa uma sensação muito incômoda – mas pertinente / necessária – aos espectadores.

Os fatos se passam em 1981, época marcante e minimamente detalhada através dos figurinos e de uma cenografia impecável. Aliado a isso, uma trilha sonora vertiginosa (que, além dos pungentes temas instrumentais, também conta com as belíssimas “Smile”, de Jimmy Durante e “Send in the Clowns”, de Frank Sinatra) – que muitas vezes atinge a plateia de maneira indescritível – transforma a experiência de assistir à produção em uma verdadeira viagem no tempo, que nos conduz aos lados mais obscuros da fictícia Gotham City e desperta o interesse pela história de seus habitantes.

Assim como visto com Bruce Wayne (interpretado por Christian Bale) em “Batman Begins”, a transformação do protagonista acontece de maneira gradual. A queda moral de Arthur Fleck – humilhado e traído de todas as maneiras possíveis por aqueles que o cercam – culmina na ascensão do Príncipe Palhaço do Crime. Ainda que o caminho até o surgimento de Coringa seja calcado em dores que se juntam para suprimir o fio de esperança do sujeito humilde que sofre de uma doença mental e é seu verdadeiro alter-ego, existe um ponto determinado em que temos a certeza de que não existe mais retorno, o tal instante em que o abismo olha de volta e corrompe o que ainda havia de intacto em sua alma funesta.

Apesar de sempre buscar por spoilers (mas nunca passá-los adiante sem que me seja solicitado), fiquei feliz em ter entrado na sala de cinema sem nenhuma informação que não fossem as compartilhadas em trailers e artes oficiais da Warner Bros. Há tanto a ser descoberto, a ser vivido em 122 minutos de duração do filme, que saber muito sobre ele talvez tirasse em parte o impacto causado por seu roteiro – escrito por Todd Phillips e Scott Silver – desde o início até o fim da exibição.

São sentimentos que se misturam, e como Arthur consegue enxergar sua vida tanto como uma tragédia, como uma comédia, assim nos sentimos diante de “Coringa”. Com a mesma facilidade que rimos (na maioria das vezes, de nervoso), as lágrimas chegam em profusão; com a mesma surpresa que recebemos determinadas notícias, sentimos alívio em ver certas ações. Mas, cabe dizer que, apesar dessa montanha-russa emocional, em nenhum momento o longa dá razão às atitudes do protagonista, celebra sua vilania ou o coloca em um patamar de intocadas virtudes.

Quanto à polêmica sobre a possibilidade de incitação de violência, como em qualquer assunto, vale lembrar que este também tem dois lados: se fosse assim, qualquer produção de teor religioso ou motivacional bastaria para fazer com que as pessoas se tornassem mais empáticas e solícitas para com seus próximos. É imperdoável e leviano colocar suas próprias falhas morais nas costas de quem não tem responsabilidade alguma sobre elas.

Embora o texto tenha ficado longo, acredite: nada que foi dito chega nem perto do que “Coringa” significa. Esqueça opiniões pré-concebidas (próprias ou alheias) e comparações que não fazem nenhum sentido com outros títulos anteriores. Basta, ao apagar das luzes do cinema, levar consigo as palavras de outro grande pensador, Aristóteles: “Nunca existiu uma grande inteligência sem uma veia de loucura”.

Absolutamente imperdível.

por Angela Debellis

Filed in: Cinema

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