Crítica: “Doutor Sono”

Minha primeira experiência com “O Iluminado” foi assistir à adaptação cinematográfica dirigida por Stanley Kubrick. Anos depois, li a obra de Stephen King na qual se baseia e entendi os motivos da pouca simpatia que o autor tem pelo filme, afinal, muitas coisas tomaram rumos diferentes nas telonas – o que não significa que ambas as produções não tenham seus próprios valores.

Dessa vez, fiz o caminho contrário: antes de conferir o longa, acompanhei a história de “Doutor Sono” (Doctor Sleep) através das páginas escritas por King em 2013. E agora, minhas sensações foram implacavelmente atingidas por dúvidas de como me sentir em relação ao que li e ao que vi.

A trama que se inicia sob os icônicos acordes do tema principal de “O Iluminado” (que tem uma das melhores trilhas do cinema), se passa cerca de 40 anos após os acontecimentos apresentados no título de 1980 e gira em torno da vida desregrada que Danny “Dan” Torrance (Ewan McGregor) leva, cercado por drogas, álcool e embates físicos que danificam seu corpo e sua mente – esta que já nem é das mais equilibradas, desde sua infância.

Com os providenciais conselhos de seu antigo amigo Dick Halloran (Carl Lumbly), Dan encontra uma maneira de manter sua “iluminação” tão controlada quanto possível, uma vez que os horrores do Hotel Overlook insistem em persegui-lo, mesmo após tanto tempo. Até o dia em que cruza o caminho de Abra Stone (Kyliegh Curran), garota que, assim como ele, carrega o fardo/privilégio de ser iluminada. É a vez do protagonista assumir o papel de mentor.

Os antagonistas surgem como uma espécie de seita denominada “O Verdadeiro Nó”. Liderado por Rose – A Cartola (Rebecca Ferguson), o grupo cujos membros – que não têm sua origem explicada – se alimentam do que eles chamam de “vapor”, e que é obtido com a morte de pessoas iluminadas. Ou seja, uma peculiar gangue de assassinos.

Caberá a Dan e Abra seguir as pistas obtidas através de sua iluminação, para elucidar um dos cruéis assassinatos – o de Bradley Trevor, o “Garoto do Beisebol” (Jacob Trembleay), que rende uma das cenas mais chocantes do filme. Vale dizer que o roteiro de Mike Flanagan (que também está à frente da direção) não apela para sustos fáceis ou migra para o gênero gore, sendo, primordialmente, calcado no terror psicológico – decisão que costuma dar ótimos frutos.

Há muito a se destacar no longa, que oferece momentos competentes em tela. O elenco afinado, os flashbacks (que transitam entre os necessários e os que estão lá apenas para conquistar a atenção dos fãs do capítulo anterior), a fotografia impecável da parte decisiva da história, fazem toda a diferença no produto final.

Mas, também é preciso salientar o fato de que, se como produto cinematográfico o filme convence, como adaptação literária deixa muito a desejar. São incontáveis mudanças, algumas que pouco trazem de alteração, outras que desviam de maneira radical (e até mesmo surpreendente) a trama contada no livro.

E por mudanças radicais, quero dizer que há situações cujo ineditismo bate de frente com as conclusões apresentadas no papel, como se fossem parte de uma versão alternativa ou algo do tipo, o que faz com que na posição de espectadora eu tenha saído satisfeita da sala, mas como leitora tenha me sentido bastante incomodada.

Contando que parte das soluções do livro é muito mais simples – inclusive visualmente – fica difícil argumentar que as modificações foram feitas para tornar a produção mais acessível. Algumas são toleráveis (em especial as que dizem respeito ao Verdadeiro Nó, bem mais elaborado na obra original), mas outras, ainda que realizadas com primor, não carregam uma necessidade verdadeira consigo.

De qualquer modo, “Doutor Sono” é um filme grandioso, seja por sua duração de 192 minutos, por sua história rica e interessante, pela criação de uma atmosfera tensa do início ao fim ou pelo fato de ser responsável por trazer ao público respostas esperadas há 42 anos, desde o lançamento do livro “O Iluminado”. Sendo assim, vale a pena conferir nos cinemas.

por Angela Debellis

Filed in: Cinema

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