Crítica: “Em Chamas”

Várias pessoas têm hobbies. Algumas colecionam selos, outras constroem modelos de aviões ou barcos, outras escrevem. Ben (Steven Yeun) por sua vez queima celeiros, ou assim diz a Yoo Ah-in (Lee Jong-su).

Yoo, vive de bicos, e das rendas da fazenda de seu pai, em Paju, Coréia. Um dia andando pela cidade, reencontra uma conhecida de infância Shin Haemi (Jeon Jong-seo), que propõe que cuide de seu gato enquanto ele viaja pela África. Ao retornar, traz consigo um novo namorado, Ben, algo que balança o emocional de Yoo, e o fará passar por uma estranha e sinistra jornada.

Essa é a história retratada em “Em Chamas” (“버닝”, Burning em inglês), filme dirigido por Lee Chang-dong, baseado no conto do escritor japonês Haruki Murakami, mostrando um trabalho incrível de adaptação de um curto conto, para um longa de 148 minutos. O filme traz mais momentos dramáticos, e motivos, do que existem no conto, por funções de meio e de criar um drama.

Além disso, a segunda parte – um verdadeiro suspense, enquanto a primeira tratava de um drama existencialista com os dilemas de Haemi e Yoo – não é exatamente própria da história de Murakami, porém funciona bem nas telas, e consegue ao mesmo tempo manter a essência do conto.

Enquanto as liberdades dramáticas para o filme podem ser consideradas um leve afastamento do material que o inspira, o título contém elementos típicos o bastante da literatura de Murakami, que por sua vez estavam ausentes no conto, além de referências a outros livros do escritor. Um exemplo de material que pouco aparece no conto é a questão social do protagonista, cujo nome não é apresentado na história, e enquanto no filme, como comum em várias histórias de Murakami, Yoo é inepto socialmente, sendo tímido, incapaz de compreender os flertes de Haemi.

As alusões aos materiais de outros contos se dão na presença de um poço, que os fãs do autor perceberão na descrição de um acidente como uma referência ao romance “Crônica do pássaro de corda”. E o gato, não existente no conto, também tem a mesma função no filme quanto nesse livro.

Além das questões próprias da literatura de Murakami, a trama em si é interessante, e a virada de uma obra mais existencialista e dramático para um suspense tenso, é bem conduzida. Algumas vezes até mesmo indícios de que isto acontecerá nos são expostos, porém não o bastante para oferecer um spoiler do próprio filme. Os dramas de Haemi, com sua dor existencial, e Yoo, com seu vazio, ambos profundamente solitários, são um elemento bem atraente.

A fotografia algumas vezes merece destaque, reforçando a narrativa verbal, e remetendo a temas falados antes, porém no geral não é algo muito especial. A trilha, por sua vez, não só é bem composta, como encaixa muito bem, e a música não incidental não só é perfeita às cenas, como reflete com eficácia o espírito da literatura do autor, tendo uma cena obrigatoriamente sem diálogos ou som, apenas ao som de Jazz – Murakami é um enorme entusiasta, tendo sido dono de um bar dedicado ao gênero, e instrumentista amador.

As atuações são agradáveis, em particular a de Steven Yeun como um antagonista completamente oposto de seu personagem em “The Walking Dead”. Jeon Jong-seo traduz bem os dramas da solidão e da depressão, ainda que ocultas de Haemi. Lee Jong-su por sua vez, deixa a dúvida se a atuação é problemática ou o personagem é tão tímido e inepto socialmente.

“Em chamas”, é opção para admiradores de literatura em geral e fãs de Murakami. E mais ainda para quem curte um suspense, em especial não-ocidentais, e com altas doses de drama existencial.

por Ícaro Marques – especial para A Toupeira

*A estreia oficial de “Em Chamas” no Brasil está prevista para 1º de novembro, mas o filme será exibido durante a 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Filed in: Cinema

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