Crítica: “Gauguin: Viagem ao Taiti”

A história de Gauguin – Viagem ao Taiti (Gauguin: Voyage de Tahiti) é baseada no diário de viagem do pintor Paul Gauguin, chamado Noa Noa, de 1893. Largando tudo em Paris, a esposa e os filhos, Gauguin viaja para a Polinesia, com o objetivo de retratar essa cultura na qual ele se sentia parte enquanto se via como “selvagem” e encontrar uma “Eva primitiva” para pintar aquelas que se tornariam as suas mais famosas obras.

Primeiro, é preciso destacar que Tehura e Jotepha não possuem vínculo romântico pelas anotações do diário. Mas, no filme, eles formam com Gauguin um triângulo amoroso e é a premissa do enredo. Essa personificação de Eva se resume em Tehura, uma reunião em uma só personagem das várias amantes de Gauguin. Acompanhamos a relação conturbada dos dois, dessa jovem dada pelos pais para o pintor, o uso dela como modelo a todo instante quando Gauguin deseja, e alguns vislumbres dessa moça em querer algo mais, com o esforço de entender esse complicado contato com o pintor.

A ideia da execução do filme, pelo diretor Édouard Deluc, vem do interesse pessoal em sua leitura de Noa Noa. Pelo livro, ele visualizou um pintor “hedonista, que quer se livrar de todas as convenções para se reconectar com a natureza ‘selvagem’”, por meio de viagens à Bretanha, ao Panamá e à Martinica.

Essa busca do europeu por desbravar culturas de outros países criou algo chamado orientalismo, no século XIX. Delacroix também teve sua viagem ao Marrocos relatada em um diário que misturava esboços em aquarela com seus relatos da vida cultural. Havia também um imaginário de fascínio do europeu, o qual habitava cidades como Paris, Londres, Viena, por esses países longínquos e vistos ora como “selvagens” ora como bucólicos. É muito complexo pensar a leitura do sujeito encerrado nesse século porque havia um quê de superioridade que o viajante, fosse artista ou não, sustentava ao adentrar em outra cultura e explorá-la temática ou politicamente.

Sobre o retrato de Gauguin, o longa consegue ser bem conduzido pela atuação completa de Vincent Cassel. O ator tem a forma da descrição de Gauguin usada pelo jornal Le Figaro em 1890, de “um homem robusto, de olhos brilhantes, que falava francamente”. Cassel, aos poucos, envelhece diante do espectador e logo se descola o nome do ator do personagem. Vemos os efeitos da doença, as manchas de pele de quem viaja sob o sol, a barba mal feita,  um olhar alucinado, toda essa transformação ajuda o espectador a entender, em um primeiro momento, as motivações de uma figura tão difícil de acompanhar quando se sabe sobre sua vida pessoal.

O pintor em questão é, sobretudo, uma pessoa que já não se identifica mais com os ares urbanos de Paris. Lendo Lettres à sa femme et ses amis (“Cartas para a sua esposa e seus amigos”), percebe-se que a fome, a pobreza e principalmente o frio rigoroso para quem era pobre em Paris nessa época se tornam os vilões constantes.

Quando se vê as cartas de Gauguin, há situações bem comuns como ele pedindo dinheiro para a esposa, a distância e a impossibilidade de estar com os outros filhos, e esse sonho que os outros tratam como loucura, enquanto ele via como projeto de uma vida inteira. Portanto, viajar para lugares distantes dessa vida já alucinada de Paris significava, para Gauguin, uma saída de um meio que já não via mais a natureza como fonte de vida.

O filme Gauguin é, em grande parte, uma exaltação do pintor. Por vezes recua e tenta se livrar da responsabilidade de dizer o quão questionáveis eram as escolhas de Gauguin e mesmo o seu caráter. Ainda é muito difícil dar conta, hoje, do fato de que obras de arte foram feitas por pessoas que não precisam ser idealizadas. E isso resvala no material de Gauguin a ponto de não se entender muito bem quais limites ele ultrapassara na sua relação com a jovem Tehura. Fica apenas a qualidade da atuação de Vincent Cassel. Mas, mesmo assim, o filme se equivoca pelo modo com que escolhe contar essa história.

A estrutura da trama chega a amenizar muito essa relação conflituosa de Gauguin com as mulheres do Taiti. Por isso é difícil falar sobre o assunto. Nenhuma época histórica nem artística pode ser posta em um invólucro de perfeição. Isso apaga possibilidades de se entender com vastidão determinado ponto. Ignorar as diversas camadas confusas, complexas e menos belas que existem dessa relação do artista com o meio torna a própria discussão esvaziada. Gauguin não era uma personalidade fácil. Para executar a história desse filme, nota-se que foi preciso colocar uma atriz maior de idade e escolher focar em apenas uma musa para Gauguin. Quando na verdade, Gauguin tinha várias escravas sexuais menores de idade.

Na realidade, ele levou três noivas nativas – com idades entre 13 e 14 anos – infectando-as e inúmeras outras garotas locais com sífilis. Ele sempre sustentou que havia razões ideológicas profundas para sua emigração, que ele estava deixando a Paris decadente por uma vida mais pura. Ainda assim, ele mantinha uma cabana que batizou La Maison du Jouir (“A Casa do Orgasmo”), com essas nativas menores de idade. Eventualmente morreu de complicações sifilíticas aos 54 anos nas remotas ilhas de Marquesas.

É o trabalho de quem estuda história da arte apontar com clareza essa densa balança entre as idealizações feitas dos pintores como geniais, essa busca incessante por criar uma aura em torno do artista como um ser divino e incólume de erros, e a necessidade de se estudar a obra de arte em questão. Quem estuda Estética se vê diante dessa enorme dificuldade em que não é bem-vindo censurar e colocar um artista numa gaveta para esquecê-lo, e muito menos deixar de estudá-lo. Mas sim, a alternativa de dar visibilidade completa às várias camadas desse processo de análise, expondo com clareza esses dados. Cabe apresentar as distinções que podemos fazer sobre a composição da obra (sem colocá-la em patamares de genialidade) e revelar esses retratos culturais que a envolvem.

A professora de história da arte da American University, Norma Broude, estudiosa feminista da arte europeia do século XIX e editora do livro Gauguin’s Challenge: New Perspectives After Postmodernism (Bloomsbury Academic: 2018), descreve as diferentes atitudes em relação a Gauguin como um “vasto abismo”.

De um lado está a “perene popularidade de Gauguin no mundo da arte, alimentada por exposições esteticamente focadas que aparecem com regularidade nos principais museus do mundo”, diz ela, e do outro lado está a “desconfiança e até repugnância com que um segmento do acadêmico o mundo, incapaz de ir além das críticas feministas e pós-colonialistas anteriores, continua a considerá-lo e a sua obra”.

Em outras palavras, falar de Gauguin é se situar em um território, ou mesmo um abismo, com implicações muito delicadas. Por isso equilibrar-se entre falar da relevância pictórica da composição dos seus quadros para artistas posteriores como Matisse, Picasso, acaba necessitando das considerações sobre a vida pessoal de Gauguin e essa dessacralização do artista. O que não é um trabalho nada fácil de se executar.

Como afirma Caroline Vercoe, professora de história da arte e reitora associada da Universidade de Auckland, Nova Zelândia, “muito do modo com que ele [Gauguin] é retratado, tais quais muitas das figuras masculinas de ‘herói’ no cânone, tem mais a ver com o progresso do cânone da arte euro-americana para mantê-lo o mais eurocêntrico possível”.

Portanto, o filme sobre essa jornada de Gauguin em sua viagem ao Taiti precisa ser levado em consideração como uma versão livre e romantizada do pintor. A atuação de Vincent Cassel é, de fato, o grande elo possível para apreciar as horas do filme. Mas, ainda assim, é muito importante destacar que Gauguin não foi esse herói incólume que a trama do filme tenta fortalecer, e muito menos viveu uma relação inocente com uma moça nativa. Falar sobre isso, uma dificuldade que se encontra até mesmo no meio acadêmico quando se estuda arte, é apenas ter no horizonte o fato de que não é mais suficiente reduzir a obra de arte ao conceito de genialidade e a vida pessoal do artista como único viés para entendê-la.

Referências bibliográficas

Material de divulgação exclusivo sobre o filme pela MARES Filmes e A2 Filmes

GAUGUIN, Paul. Lettres à sa femme et à ses amis. Les Cahiers Rouges, Paris : Grasset, 2003

MENDELSOHN, Meredith. Why Is the Art World Divided over Gauguin’s Legacy? (Artsy, 2017 https://www.artsy.net/article/artsy-editorial-art-divided-gauguins-legacy)

SMART, Alastair. Is it wrong to admire Paul Gauguin’s art? (The Telegraph, 2010 https://www.telegraph.co.uk/culture/art/8011066/Is-it-wrong-to-admire-Paul-Gauguins-art.html)

por Marina Franconeti – especial para A Toupeira

Filed in: Cinema

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