Crítica: “Nós”

Enquanto o dramaturgo e filósofo Jean-Paul Sartre afirma em sua peça de teatro “Entre Quatro Paredes” (Huis Clos, de 1944), que O Inferno são os Outros, o escritor Leandro Karnal ao lado da Monja Coen (fundadora da Comunidade Zen-Budista do Brasil) alegam no título do livro lançado em 2018, do qual dividem a autoria, que O Inferno somos Nós.

É diante de um antagonismo similar que o novo trabalho escrito, produzido e dirigido por Jordan Peele ganha as telas de cinema para colocar o espectador em um estado quase hipnótico frente à intrincada e surpreendente trama do longa cujo título “Nós” (Us), carrega ao mesmo tempo a simplicidade e a complexidade tão características do ser humano.

As sequências iniciais não parecem fazer sentido à primeira vista – ainda que em uma delas, vejamos a protagonista ainda criança, em 1986, no momento em que desenvolve um trauma que a perseguirá por toda a vida após se perder de seus pais em um parque de diversões e confrontar-se com algo inexplicável no ambiente de uma tradicional / assustadora Sala de Espelhos.

Mas, se visualmente a plateia pode ficar com dúvidas sobre o que é apresentado no começo, a trilha sonora surge com uma eficiência magistral para inserir o espectador na hábil labirinto de ideias criado por Jordan Peele, já premiado com o Oscar – por seu filme anterior, “Corra!” – nesta, que é apenas a sua segunda obra. A composição musical é daquelas que permanecem na memória mesmo após o acender das luzes da sala de cinema.

A narrativa se passa em dias atuais e nos apresenta a família Wilson, composta pelo casal Adelaide (Lupita Nyong’o carimbando mais uma provável indicação ao Oscar – dessa vez como Melhor Atriz) e Gabe (Winston Duke ) e seus filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex). O quarteto parece bem afinado e entrega interpretações muito convincentes, tanto individual quanto coletivamente.

A ação começa de fato quando os personagens vão passar férias em sua casa de veraneio e decidem visitar a praia de Santa Cruz – a mesma na qual Adelaide se perdeu quando criança. Este é o ponto em que aparecem os duplos Red, Abraham, Umbrae e Pluto (ou “Sombras” como são apresentados), também interpretados pelos menos atores e que são uma espécie de recriação macabra das figuras centrais – seja pelos olhares vidrados, pela comunicação parca e problemática ou pelo caráter nitidamente destrutivo que não fazem nenhuma questão de manter velado.

É quase impossível escrever sem correr o risco de revelar algum fator importante ou soltar um – temido pela maioria – spoiler. Mas, vale dizer que é preciso ficar atento a todos os detalhes, porque quando tudo parece se encaixar, pode acontecer alguma reviravolta e transformar a calmaria em um caos ainda mais generalizado. E, embora isso aconteça na totalidade da produção, não é um recurso que se mostra cansativo – ponto para Jordan Peele que consegue a façanha de manter intocado o interesse do espectador pelos 116 minutos de duração do filme.

Ainda que seja definido como uma obra dos gêneros suspense ou terror, “Nós” consegue ser muito mais do que “apenas” isso. A reflexão sobre nosso eu interior, sobre a imagem que os outros têm, sobre quem somos de verdade, dá ao longa ares bem mais intrincados e faz com que o público sinta-se com total incapacidade de ficar impassível (positiva ou negativamente) depois de acompanhar a história.

Provocativo. Inovador. Imperdível.

por Angela Debellis

*Filme assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Universal Pictures.

Filed in: Cinema

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