Crítica: “Um limite entre nós”

O filme “Um limite entre nós” (Fences) é uma adaptação da peça teatral de 1983, escrita por August Wilson e encenada na Broadway também com Denzel Washington em seu respectivo papel, em 2010, além de ser vencedora do Pulitzer. A produção indicada a três categorias do Oscar incluindo Melhor Filme, e dirigida por Denzel, retrata a história de uma família nos anos de 1950 que enfrenta o racismo e as complexidades das relações familiares.

O texto teatral de August Wilson, traduzido pela editora Gente, é poderoso. De fato, é escrito com uma poeticidade certeira, que soa com naturalidade quando as falas são encenadas, além de dar voz a esses personagens os quais apresentam a situação do negro nos anos de 1950. Contudo, é com Viola e Denzel que o texto realmente ganha vida. O humor parece surgir apenas pela atuação de ambos, os diálogos se aprofundam, e a emoção daquelas falas simbólicas para a vivência dos personagens é dada pela performance dos atores.

O elenco, como um todo, é o grande mérito do filme. É fácil se comover ou se deixar conduzir por suas histórias, e em uníssono, as interpretações conseguem contar uma situação que não pode se isolar entre os quintais familiares. Cada personagem carrega um arquétipo, mas as suas camadas vão se revelando no decorrer da trama. Troy Maxson (Denzel Washington) é um jogador de beisebol aposentado que trabalha recolhendo lixo das ruas e leva a sério a responsabilidade de ser o provedor de um lar. A postura de Troy, nesta pressão em colocar pão na mesa, a princípio, faz pensar e muito na maneira com que a sociedade é constituída entre os gêneros.

Troy é um marido que não é violento e expõe sem medo o amor pela esposa, Rose, personagem de Viola Davis. Contudo, isso não impede de encontrarmos camadas mais profundas em seu personagem, de condená-lo por seus erros, de se comover com a sua relação conturbada com o pai, e ainda pensar em quantos jovens precisaram assumir essa responsabilidade de prover uma casa sem condições de encontrar um bom trabalho ou de seguir um sonho.

Por outro lado, temos Rose, uma mulher que já encontrou homens abusivos por toda a sua vida e, com Troy, acabou por estabelecer uma relação segura de cumplicidade e amor. Aos poucos vemos essa convivência ideal passar por testes. Rose cresce diante dos olhos do espectador, como uma mulher que também deseja independência e dar voz aos seus desejos. Essa voz, tanto o texto de August Wilson quanto a atuação de Viola, consegue ser expandida. Porém, é difícil, com um olhar contemporâneo, esperar pela libertação de uma personagem feminina contextualizada nos anos de 1950, quando proteger a família e o casamento eram, de fato, o objetivo de vida de tantas mulheres.

Quando Troy dá a entender que casamento pode ser uma condenação por trazer essa densa responsabilidade de conduzir uma vida, pensamos que é igualmente pesado para a mulher que depende de outro para que a comida seja posta à mesa, ou que sempre esteja disposta a ter filhos, a confiar e a estar disponível como objeto de desejo do marido. Ambos fazem concessões, e o espectador passa a ponderar cada um dos lados, quase como se nos colocássemos entre a cerca que divide o casal. A situação vivenciada pelos personagens passa a favorecer Rose, assumimos a sua visão e compreendemos o seu lado. Ao final, porém, parece que tanto o texto teatral quanto o filme, buscam redimir Troy, quando poderia ter deixado em aberto para preservar essa complexidade dos personagens. Pois nada é tão simples assim.

A questão é que o roteiro revela que não há respostas exatas para explicar as relações, mas que as pessoas precisam também assumir a responsabilidade por seus erros e suas ações. A grande temática do longa é a cerca, que dá nome a ele no original: se as fronteiras que estabelecemos são para nos proteger do mundo exterior, ou se podem existir cercas que separam as pessoas dentro de uma família. Se basta nos proteger do mundo, quando as cercas podem estar do lado de dentro, corroendo as relações.

O que podemos considerar a falha de “Um limite entre nós” é deixar de se assumir como adaptação para o cinema, e soar demais como uma peça teatral. Obviamente, não é por completo um defeito, pois podemos ver a capacidade surpreendente de Denzel e Viola em conduzirem cenas de longos diálogos, com nuances perfeitas em suas falas. Mas passa a ser um problema quando as conversas se prolongam demais. O filme abandona a oportunidade de ser fiel ao texto e, ao mesmo tempo, de recriar história e cenário de acordo com a linguagem cinematográfica.

O texto do longa é exatamente igual ao da peça, os poucos cortes e as passagens de tempo não ajudam, parece que o começo é um grande bloco interminável, enquanto o restante da adaptação tem um pouco mais de fluidez, porém um tanto prejudicado pelo ritmo inicial. E isso apresenta uma ausência de personalidade na constituição do filme, que poderia aproveitar as possibilidades do cinema em dar emoção ao silêncio, de contar uma história também pela fotografia e pela trilha, e de desvendar mais da realidade daquele bairro onde os personagens vivem.

Assim, “Um limite entre nós” é um filme de excelentes atuações e de ótima história. Ver Viola Davis e Denzel Washington em seus papéis, com as questões que eles levantam, é algo que permanece ao fim da exibição. Ele seria um resultado mais equilibrado se tivesse feito, de fato, uma adaptação da peça, contando a mesma história de August Wilson, com as possibilidades que o cinema tem de recriar e dar nova perspectiva a uma peça teatral.

por Marina Franconeti – especial para A Toupeira

Filed in: Cinema

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