Crítica: “Vida de Cão”

Assistir a um documentário, normalmente pode ser traduzido como uma experiência marcante, dependendo da carga emocional prévia do espectador. Produções que tratam de assuntos relacionados a animais são as que mais tocam meu coração e com “Vida de Cão” (Stray) não foi diferente.

Elizabeth Lo assume função quádrupla e atua na direção, produção, filmagem e edição do longa cuja história se passa nas ruas de Istambul (e outras partes da Turquia) e mostra a dura rotina de Zeytin, Nazar e Kartal, três cachorros em situação de rua.

Ainda que haja, depois de anos de aniquilação em massa, uma rígida lei que visa proteger esses animais (proibindo a prática de eutanásia e a privação de sua liberdade), é muito frustrante ver como a situação precária em que tantos vivem pode afetá-los de maneira tão brutal.

Em dado momento, é dito que Zeytin deve ter cerca de 2 anos apenas, mas as marcas que a vida nas rua imprime em seu físico e emocional já são bem visíveis, principalmente nas cenas que fazem uso de closes e mostram seus olhos – quem já teve a oportunidade de conviver com um cachorro, sabe de sua imensa capacidade de comunicar através do olhar.

A falta da segurança de um lar surge no topo de inúmeros problemas que incluem brigas com outros cães, procriação indevida, alimentação escassa e inadequada. Fora o risco frequente de atropelamento ou de maus tratos velados que nem sempre serão detectados a tempo de serem impedidos.

Junto ao trio canino, é possível acompanhar alguns jovens (parte deles refugiados de outros países) que também vivem em situação de rua. É impressionante como, ao mesmo tempo em que não parecem ter tanto apreço pelas próprias vidas – uma vez que fazem uso de cola de sapateiro como uma triste fuga da realidade – eles cuidam tão bem dos animais, inclusive ultrapassam limites de bom senso a fim de ter mais um animal consigo (o lindo filhote Kartal, a quem passam chamar de Sari).

Não há cenas de violência explícita no documentário (as maiores indisposições são entre os próprios cachorros que se encontram pelo caminho), mas algumas sequências têm um impacto maior. Entre elas, a declaração de um transeunte que afirma que, ser tocado por um cachorro, o transformaria em alguém impuro. Não me cabe fazer nenhum tipo de análise de ritos ou crenças religiosas, mas confesso ter me sentido bastante incomodada com tal declaração, quase como se houvesse um ato de agressão física. Ainda bem que os animais não partilham de nossa estranha “racionalidade”.

Com as filmagens tendo sido realizadas entre 2017 e 2019, é difícil imaginar se Zeytin, Nazar e Kartal ainda estão vivos nos dias de hoje. E isso é muito triste, já que, com oportunidades melhores e acolhimento, eles poderiam viver muitos anos.

De todo modo, é gratificante perceber que, embora a dureza das ruas possa tirar quase tudo deles, a inata virtude de encontrar alegria em pequenos momentos – como em brincadeiras simples e corridas em praças, ou em um carinho feito por quem sabe o valor de suas existências – permanece intacta o suficiente para que enxerguemos a inocência que lhes é tão peculiar.

Durante a exibição do longa, algumas pertinentes frase são mostradas em tela. Entre elas, uma do filósofo Temístio, datada de 352 A.C., que afirma: Os cachorros vigiam os seres humanos não para garantir que não percam seus bens, mas para que não tenham sua integridade roubada”. Palavras com as quais eu concordo totalmente.

Distribuído pela Synapse Distribution, “Vida de Cão” já está disponível para compra e aluguel nas plataformas Claro Now, Vivo Play, Sky Play, Google Play e YouTube Filmes.

por Angela Debellis

*Título assistido via streaming, a convite da Synapse Distribution.

Filed in: BD, DVD, Digital

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