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Crítica: “Memórias de um Caracol”

“A vida real do ser humano consiste em ser feliz, principalmente por estar sempre na esperança de sê-lo muito em breve”. A frase atribuída ao autor estadunidense, Edgar Allan Poe, é uma síntese do que tantos sentem no decorrer de suas trajetórias.

Na ânsia de alcançar a felicidade plena, acabamos cegos diante de realizações possíveis, que nos trariam momentos de júbilo e satisfação. Afortunados são os que percebem a tempo como encontrar o verdadeiro caminho para a felicidade.

Indicado ao Globo de Ouro e ao Oscar de Melhor Animação, “Memórias de um Caracol” (Memoir of a Snail) traz um doloroso retrato sobre essa incessante busca. A história tem como cenário a Austrália – inicialmente em Melbourne.

Seus protagonistas são os irmãos gêmeos, Grace (voz de Sarah Snook) e Gilbert (Kodi Smit – McPhee), que veem seu ciclo de desventuras se iniciar logo após o nascimento, quando perdem sua mãe Annie, devido a complicações no parto.

Criadas pelo pai, Percy (Dominique Pinon) – um ex-artista de rua que, depois de um acidente, tornou-se paraplégico e rendeu-se à dependência de álcool -, as crianças têm uma rotina difícil e cheia de responsabilidades precoces. Mas, nunca estão sozinhas, pois fazem companhia uma à outra, e esse é o único raio de luz que ilumina os dias sombrios.

Quando se tornam completamente órfãos, os irmãos são encaminhados a diferentes lares adotivos. O reencontro torna-se uma de suas metas de vida, cujas novas realidades, embora distintas, carregam mais semelhanças do que podiam imaginar.

Com a intervenção de uma assistente social, Grace vai para Canberra e é acolhida pelos simpáticos Ian e Narelle (ambos com voz de Paul Capsis), casal que até tenta, mas não consegue desempenhar o papel de pais como esperado (por suas escolhas pregressas, que permanecem impactando suas ações).

Enquanto Gilbert vai morar em uma fazenda produtora de maçãs, comandada por Owen (Bernie Clifford) e Ruth Appleby (Magda Szubanski), religiosos extremistas que desconhecem o limite que separa o oferecimento de uma boa educação, de um forjamento destrutivo de caráter, com base em crenças que não fazem sentido.

Ostentando uma personalidade introvertida e propensa à melancolia, a garota passa a identificar-se com a figura de caracóis – moluscos que também eram fonte de interesse de sua mãe. E, gradativamente, cria uma concha emocional ao seu redor, na forma de uma compulsão que ganha várias e lamentáveis ramificações.

A única que consegue quebrar essa armadura – ou pelo menos encontrar uma brecha nela – é sua vizinha, Pinky (Jacki Waever). A excêntrica idosa faz de tudo para mostrar à Grace que é possível enxergar beleza e leveza mesmo quando tudo parece dizer o contrário.

Preso à rigidez das normas impostas em seu novo lar, Gilbert vê os sonhos de reencontrar a irmã e de tornar-se um malabarista como o pai, cada vez mais distantes. Assim como a possibilidade de ser quem realmente é, sem que isso se torne um risco real à sua existência.

Escrita e dirigida por Adam Elliot, a comovente narrativa é contada por Grace – agora uma mulher adulta – enquanto liberta Sylvia, um dos caracóis criados por ela e que tanto lhe fez companhia em seus momentos de extrema solidão.

A implacável passagem dos anos, a percepção de que o tempo se esvai sem que tenhamos nenhum controle sobre ele, as expectativas frustradas, as decepções com aqueles que amamos, as mágoas que permanecem na superfície de nossas almas, as perdas físicas e emocionais.

Tudo é retratado de maneira sensível e verdadeira, o que faz os espectadores, em algum momento, se conectarem aos personagens e, junto a eles, derramarem lágrimas sobre suas próprias dores.

No final das contas, “Memórias de um Caracol”, ainda que trate de assuntos essencialmente tristes (mas, bem próximos à condição de muitos), é um delicado relato que toca o coração e serve como lembrete para nunca deixarmos de valorizar o que de fato importa.

Imperdível.

por Angela Debellis

*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Mares Filmes.

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