“Entre Dois Mundos” (Ouistreham / Between Two Worlds) retrata a vida do pessoal que executa o serviço de limpeza, a extrema dificuldade inicial para conseguir o emprego que ajude a sobreviver; as exigências que devem ser cumpridas para ter e manter esse lugar laboral.
Revela os grandes problemas e algumas alegrias – poucas e simples – que tal tipo de emprego oferece; os sonhos, as ilusões, importantes e de difícil obtenção para esses trabalhadores. (“É legal conseguir o que se quer”). Deslocar-se até o local de trabalho, acordar cedo, trabalhar muitas horas diárias, morar em lugares periclitantes e perigosos etc. Destaca-se também o contraste com outra forma de vida, de intelectuais e demais profissionais ou empresários com um nível bastante elevado, com boa alimentação, vestimenta, residências, viagens.
É baseado no best-seller “Le Quai de Ouistreham” da famosa escritora francesa Florence Aubenas, que, para poder escrevê-lo, retratando-o de modo mais fiel possível o trabalho das chamadas domésticas (há pouquíssimos homens), decidiu fingir ser uma delas.
“Entre Dois Mundos” não só evidencia tal panorama laboral em si mesmo como também mostrará o contraste com a classe social, econômica e cultural mais privilegiada. Para reforçar o argumento, ajuda saber que Ouistreham (seu título original) é uma comarca, com um porto comercial e uma pequena cidade, na região da Normandia, no Norte da França. Tem cerca de 6.000 habitantes e fica a 15 quilômetros de Caen, cidade de 100.000 pessoas.
É diferente o ambiente em Caen, onde mora Marianne Winckler (Juliette Binoche), protagonista do filme – realmente escritora, porém, simulando ser trabalhadora, do mundo em que vivem Chrystèle (Hélène Lambert), Louise (Louise Pociecka) e outras, em Ouistreham.
A trama vai transcorrer sem maiores sobressaltos, detalhando esse tipo de serviço básico, porém, digno de reconhecimento – e não de certa subestimação e exploração – até que, nas sequências finais há uma reviravolta, de certa forma previsível. Provavelmente, o mais interessante desta realização sejam perguntas sobre a autenticidade/falsidade dos seres humanos e a justificativa ou não sobre a mentira e o engano dos outros para atingir uma causa superior.
Há um antecedente recente de um protagonista que também trabalha fazendo limpeza de banheiros públicos, nesse caso: “Dias Perfeitos” (2023). Só que é no Japão, onde os banheiros e seu uso são totalmente diferentes, civilizados.
Não é a primeira vez que estrelas de primeiro nível entram na pele de empregadas ou trabalhadoras de fábrica. Por exemplo, Sally Field em “Norma Rae” (1979), como uma lutadora têxtil; Catherine Deneuve, em “Dançando no Escuro” (2000), como uma operária; Jennifer Lopez em “Encontro de Amor” (2002), como uma arrumadeira em um hotel. Em todos os casos, há uma mensagem sobre a importância deste serviço e os preconceitos com que se defronta.
Em “Entre Dois Mundos”, há boa interpretação de Juliette Binoche em seu 64º longa-metragem, pela variedade de situações que deve encarar. Sem esquecer todos os demais nomes do elenco, debutantes no cinema. Podem ser apontadas várias cenas, em especial uma na qual a protagonista reflete se vai revelar ou não sua real condição. Não há palavras nem sequer gestos ou expressão do pensamento interior. De todas as formas, o espectador entenderá perfeitamente e supõe o que pode vir a acontecer.
Em cenas como a mencionada e na trama como um todo, ressaltam as atuações e o roteiro e direção de Emmanuel Carrère. Porém, a edição (Albertine Lastera) tem pontos positivos e outros que deixam dúvidas, principalmente nas sequências finais onde há pulos ou subentendidos. No balanço geral, a descrição deste tipo de trabalho que a sociedade e nossa cultura desvalorizam, os vínculos dos personagens, e as perguntas de natureza ética que deixa, fazem deste um filme para refletir de modo bastante aprofundado.
por Tomás Allen – especial para A Toupeira
*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Pandora Filmes.
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