É comum brasileiros acreditarem que a questão das favelas seja algo restrito ao Brasil, porém isso é um equívoco sem tamanho. Essas comunidades extremamente empobrecidas, de alta vulnerabilidade social, política e até mesmo ambiental – muitas existem em áreas preocupantes, onde existem grande risco de desabamento, ou contaminação de solo, etc. – existem no mundo todo.
Nos países de língua castelhana, existem vários termos para favela: Cantegrille no Uruguai, Villa Miseria na Argentina; no português temos os Bairros de Lata em Portugal, os Caniços em Moçambique, os Musseques em Angola, e a Favela no Brasil. Além dos países ibero-americanos, existem na Índia, EUA, Coréia do Sul, Austrália, Inglaterra, Russia, entre outros.
Todas estas comunidades, no entanto, têm uma origem comum: a desigualdade social, e um resultado comum: são segregadas do resto da sociedade, vistas com desprezo pelas camadas sociais mais elevadas. Apesar disto, as causas destas desigualdades são distintas de cada país, por exemplo: no Brasil, têm origens na abolição da escravatura e no êxodo para as cidades no Século XX; em Portugal, geralmente são formadas por imigrantes vindos de suas diversas ex-colônias, em particular na África, que partem à procura de melhores condições que em seu país natal.
O filme “O Fim do Mundo” (idem) se passa em uma destas favelas em Portugal, composta primariamente por imigrantes, refugiados e descendentes. O jovem Spira (Michel David Pires Spencer) se vê de volta à sua comunidade na Reboleira, Lisboa, após passar oito anos no reformatório. Tendo perdido sua adolescência inteira preso, agora ele deverá enfrentar novamente o cotidiano do bairro, regado por descaso e ganância governamental, assim como encarar sua passagem de jovem a adulto e o despertar de sua sexualidade.
Este é o segundo trabalho do diretor luso-suíço Basil da Cunha. Este mesmo morou no bairro da Reboleira para preparar seu filme (que faz parte da programação do 8º Panorama Digital do Cinema Suíço), inspirando-se em conhecidos e amigos para construir seus personagens, conferindo realidade e sinceridade únicas, retratando bem a segregação social, econômica e racial em Portugal.
Para refletir esta alienação em relação à sociedade portuguesa, as tomadas em geral incluem poucos personagens em cena, mesmo em enquadramentos mais voltados à paisagem, preferindo zooms nos rostos dos personagens com frequência.
A trilha sonora é de uma enorme maestria. Focando-se em músicas para órgão, com inspirações religiosas, com uma harmonia estática não conduzindo a lugar algum, de forma a refletir o pensamento desesperançoso dos jovens. Além disso, o posicionamento das faixas durante o filme é muito bem planejado, e muitas vezes o drama vem de cenas sem música.
A atuação, no entanto, é um tanto fraca, porém isso é compreensível: Nenhum dos atores é profissional. Isso também se reflete no ritmo das falas, que misturado a um português das outras ex-colônias portuguesas, acaba por tornar um tanto incompreensível, mesmo para lusófonos brasileiros, e é recomendado o uso de legendas.
É fácil encontrar paralelos, e até mesmo grandes similaridades, nos temas abordados em “O Fim do Mundo”. E isto talvez seja sua maior importância: ao retratar um problema local, acaba por abordar uma temática universal, dando voz àqueles afetados por esta.
por Ícaro Marques – especial para A Toupeira