Crítica: “A Odisseia”

Por séculos, o homem povoa o mundo como explorador. Romanceou-se o ato de desbravar terras desconhecidas, de retratar aquilo que foi visto por meio de diários de bordo, aquarelas, documentários, com a urgência de entender a existência humana concomitante à natureza. Se a questão constante é como lidamos com a nossa pequenez diante da vastidão do oceano e do universo das estrelas, sabemos que movidos por isso, a relação com a vida natural já foi do encantamento à exploração e destruição do ecossistema.

É com essa premissa que, aos poucos, A Odisseia (L’Odyssée), de Jérôme Salle, se estabelece como um indicativo da necessidade de se falar em ecologia. A cinebiografia nos apresenta partes importantes da vida do documentarista e oceanógrafo Jacques-Yves Cousteau à bordo do famoso Calypso pelos mares. Também inventor do aqualung, equipamento que substitui o pesado escafandro, Cousteau levou o mar infinito para os olhos humanos, por meio de uma série de 12 filmes, mais o consagrado O Mundo Silencioso, vencedor da Palma de Ouro em 1956, rodado no Mar do Mediterrâneo e Vermelho.

Cousteau registrou tubarões, leões-marinhos, peixes, grutas nunca vistas, e a emoção dos humanos que formavam a sua tripulação diante das descobertas. O longa apresenta os primeiros instantes em que Cousteau, com a ajuda da esposa, dos filhos pequenos, mergulhadores e parentes ajudam a dar vida ao Calypso, até a fama, os conflitos familiares e a velhice.

É muito fácil se deixar envolver pelos personagens, a ponto de se achar diante do real Cousteau e sua família. Lambert Wilson entrega um Cousteau radiante, vivo em seu sonho, e também humano, falho, com uma atuação brilhante. Audrey Tautou também tem participação destacável como a intensa esposa de Cousteau, Simone Melchior Cousteau, que vai da poderosa sonhadora que apoia a causa do Calypso à melancólica figura que se vê à sombra do marido. Vemos ambos envelhecendo em ótima caracterização. Para os personagens, há uma inversão: em vez de desejarem habitar a terra, eles encontram no oceano o significado de lar. E, como as águas, essa família passa por tempestades, sobrevivem juntos, veem mundos que outros não viram.

Certamente Cousteau foi uma figura ainda mais complexa do que aquela retratada no filme. Porém, a cinebiografia consegue demarcar satisfatoriamente suas complexidades e defeitos, sem deixar de apontar as suas conquistas relevantes para a ecologia e o cinema. É interessante constatar como a relação com o filho é o enfoque da produção e como o restante consegue despontar em torno desse drama comum.

Além disso, a fotografia é tão grandiosa quanto a proposta de Cousteau. A cinebiografia é metalinguística: fascina ver a construção dos filmes de Cousteau pela própria criação de A Odisseia. Aquela baleia que aparece para nós, espectadores atuais, também se mostrou, em sua espécie, há décadas para Phillippe Cousteau, filho do diretor e cineasta também, personagem que recebe destaque válido na história. Somos levados, assim, à Antártida, ao degelo e à destruição das espécies.

Aliada à fotografia, a trilha sonora delicada de Alexandre Desplat dá um tom perfeito ao filme. A tensão, a melancolia, a vivacidade da descoberta, tudo se percebe pelo trabalho do vencedor do Oscar 2018 pela trilha de A Forma da Água.

O mar pode ser grandioso, tão imenso que não deveria ser possível deixar marcas nele. O que acontece, porém, e que A Odisseia nos lembra é que o homem, em coletivo, deixa seus rastros pelo petróleo e pelo lixo nos oceanos e praias, e seu ato é tão destrutivo que consegue destituir o poder da natureza de se reconstruir e evoluir. Por isso é uma ótima história. É um lembrete sobre uma parte importante da história do cinema e reforça a necessidade em se falar sobre as medidas práticas para preservação do meio que habitamos, numa era em que presidentes ignoram o aquecimento global.

por Marina Franconeti – especial para A Toupeira

Filed in: Cinema

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