Escrever sobre este filme implica fazê-lo sobre uma página muito importante da história argentina. Aliás, pode ser necessário ter um panorama do acontecido no país até chegar ao ano de 1985. Porém, em geral, numa crítica cinematográfica deve prevalecer uma avaliação do próprio filme. Estamos aqui diante dessas afirmações, tensões e, eventualmente, contradições com as que este título nos defronta.
Santiago Mitre, o diretor, tem alguns antecedentes no cinema, principalmente como roteirista – “Leonera”, “Carancho”, “A cordilheira” -. Ele, junto com os outros roteiristas – Mariano Llinás e Martín Mauregui –, ao fazer “Argentina, 1985” tomaram decisões várias, até muitas. Uma delas foi delimitar o relato ao momento imediatamente prévio e o mais específico, o julgamento dos principais militares responsáveis pelo governo nacional, “de facto” – 1976 a 1982.
Nesse sentido, poderia dizer-se que à realização lhe falta o contexto mais amplo, os antecedentes do que é, sim, central: o denominado “Juicio a las Juntas”. Os sucessos anteriores estão descritos brevemente, por algumas legendas iniciais e umas poucas intervenções dos julgados.
Eles falam que tiveram que reprimir com base na situação de perigo em que se encontrava o país e em uma disposição do governo civil anterior. Perigo suposto e que não dava lugar às atrocidades por eles cometidas – isso está expressamente dito, tanto historicamente quanto no filme, pelo presidente do tribunal civil encarregado do julgamento.
Também há ausência do percurso ulterior dessa causa jurídica. E não estão as falas dos militares com autojustificação ideológica e inclusive religiosa do golpe de estado contra as autoridades civis e das aberrações cometidas durante o governo ditatorial exercido. Por outra parte, deve-se reconhecer que tais recortes fenomenológicos são uma opção, à qual os criadores – em especial o diretor -, tem total direito.
Para compensar, há sim, detalhes que não eram tão conhecidos publicamente da vida familiar dos fiscais [promotores], Strassera (Ricardo Darín, atuação com sua idoneidade habitual) e Moreno Ocampo (Peter Lanzani). Menção também ao prolífico Norman Briski, quem já vimos em 2019 em sala de São Paulo em Um Amor Inesperado, aqui como o ancião pai de Strassera.
O longo e atribulado percurso desde pouco antes de Strassera ser designado fiscal até chegar a um final dramático é a matéria da que está feito o filme, que resulta bastante fluido. Em outra decisão dos realizadores, a emoção está dosificada e aparece só em algumas passagens, com picos dados em especial pelo depoimento de uma mulher vítima de abusos inclusive no momento de dar à luz um filho em um veículo policial e ainda depois do nascimento.
Também, na corajosa apresentação final do fiscal perante os juízes – leitura feita densa e cuidadosamente pelo conhecido ator e aqui protagonista absoluto, o já mencionado Ricardo Darín. E, a seguir, na reação do público presente na sala, com prolongados aplausos enfáticos e ao mesmo tempo respeitosos.
Há um esforço da produção para retratar aquela época detalhadamente (maquiagem, vestuário, fisionomia dos personagens, aspectos da cidade…), inclusive esmero para reproduzir exatamente a sala do tribunal, gestualidade etc. Muitos elementos fazem lembrar outro título argentino sobre este mesmo governo ditatorial, A História Oficial, justamente de 1985 e ganhador do Óscar a produções estrangeiras.
Argentina, 1985 está dedicado às “vítimas do terrorismo de Estado”, segundo expressado em uma legenda final. Sem ser brilhante como relato cinematográfico, mas também longe de ser ruim, cumpre com bastante propriedade seu papel, propondo a conservação de valores fundamentais e assinando uma expressão decisiva na vida das sociedades, neste caso a argentina: contra o absolutismo ditatorial, prepotente e arbitrário até ser patológico: Nunca Mais.
Tomás Allen – especial para A Toupeira
*Título assistido através da plataforma de streaming Prime Video.