Crítica: Memória

Em seu seminal romance “Em Busca do Tempo Perdido”, Marcel Proust analisa a memória não como um monolito de onde podemos tirar informações, mas como lembretes, que não são completamente confiáveis, porém podem ser influenciados por outras memórias, ideais, crenças, emoções… De fato, comprovam pessoas envolvidas com neurologia/neurociência e psicologia, que a memória é algo plástico, moldável, que pode se alterar radicalmente com o tempo.

“Memória” (Memoria) de Apichatpong Weerasethakul é uma interessante análise da plasticidade das memórias, da natureza dos sonhos, e também de como ambos se influenciam. No filme, Jessica Holland (Tilda Swinton) é repentinamente acordada por um alto ruído, que aparentemente somente ela escuta.

A partir disto, a personagem começa uma jornada pessoal, para compreender um mundo onde amigos desaparecem ou nunca existiram, alguns mortos na realidade nunca morreram, e pescadores conseguem contemplar as histórias que cada objeto se lembra.

A primeira coisa a se notar é que apesar de não ser um título de fantasia, existe um clima onírico muito grande no filme. Essa sensação não se dá como tradicionalmente, onde imagens surreais ou fantásticas seriam expostas, mas como um sonho realista, em que memórias de eventos se misturam e se transformam, formando cenários reais, ainda que imaginários, com personagens que aparecem com nomes trocados, e locais são reconhecíveis, mas não são aqueles cuja imagem representa.

Dois exemplos disto: o primeiro quando uma personagem doente se vê não só miraculosamente recuperada, mas sem sequelas de sua misteriosa aflição; o outro envolve um personagem que Jessica conhece e que simplesmente nunca existiu, mas ela o reencontra em outro lugar, agora velho, e com habilidades que não possuía antes.

Essa realidade onírica se interpõe às paisagens reais da Colômbia: as praças e ruas, assim como a Universidad Nacional em Bogotá e suas vilas remotas, nas quais pescadores ganham a vida. Todos locais reais, sólidos e perceptíveis, elementos de memórias verdadeiras e pessoais. Uma grande pergunta é: a quem pertencem tais memórias? Sua protagonista? Um observador externo que está relembrando uma história? Um sonhador adormecido? Almas presas em um limbo?

Por sua vez, tais paisagens existem graças a um uso fantástico da fotografia, que apresenta imagens não só belas, mas que auxiliam a nos vermos imersos neste estranho sonho, ou remembramento. A música é mínima, mas contribui para a natureza mais realista da produção – a maior parte pertence à cena, e não é externa a esta.

“Memória” é hermético em vários elementos, com diversas e vastas simbologias e metáforas, que apenas o mais atento e analítico dos observadores perceberá. Além disso, oferece poucas soluções para as perguntas apresentadas, e mesmo quando há respostas, estas apenas levantam mais questões e enigmas. Desta forma, poderá não agradar o espectador casual de cinema.

No entanto, para aqueles que valorizam filmes simbólicos e artísticos, oferece profundas reflexões não só no sentido de decifrar tal obra, mas sobre a própria natureza dos sonhos e das memórias.

por Ícaro Marques – especial para A Toupeira

*Titulo assistido em Cabine de Imprensa promovida pela O2 Play.

Filed in: Cinema

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