“A Verdade Histórica é, muitas vezes, uma mentira com a qual todos concordam.” É uma famosa frase atribuída a Napoleão Bonaparte. Ironicamente, é questionável essa sua atribuição, sendo que ditados já existiam entre os eruditos franceses na época da ascensão do general corso.
Apesar deste fato sobre a frase, ela ainda é importante e representativa de como a história pode ser manipulada para servir qualquer ideal, do mais nobre ao mais vil, sendo que não são raros casos assim, em particular quando quer-se higienizá-la, torná-la melhor do que realmente era. Um exemplo clássico para nós brasileiros é a figura de Duque de Caxias, que se existisse a Convenção de Geneva em sua época, muitas de suas ações seriam consideradas crimes de guerra, mas ainda assim é venerado por vários como figura heroica e corajosa.
Em “Primavera”, primeiro longa-metragem do diretor Carlos Porto de Andrade Jr., a história crua e violenta de uma família é contraposta à versão higienizada e publicada: no leito de morte, o pai conta ao narrador (Caco Ciocler) a saga de sua família, que frequentemente é oposta ao livro publicado por seus primos Edgard e Adélia, onde esta é purificada e glamourizada, para agradar aos públicos sensíveis e românticos.
Assim sendo, o narrador nos oferece tanto os fatos de seu pai como as narrativas de seus primos, entrelaçando fato e ficção de ambos os lados, numa trama que existe quase num vácuo temporal, onde a história alheia da família não importa, e seus personagens vivem séculos interagindo com cada uma das gerações da família, desde o tataravô até o pai do protagonista.
Por sua vez a parte visual desta narrativa não nos é apresentada em reconstruções literais ou perfeitas das ocorrências, mas através de filmagens e fotos de arquivos, e as poucas cenas feitas propriamente para o filme frequentemente são mais simbólicas do que qualquer outra coisa. Isto ajuda a reforçar não linearidade da trama, assim como o distanciamento da história familiar da história do resto do Brasil, além de dar um tom de documentário ao longa.
No entanto, esta técnica só funciona devido à qualidade de Carlos Porto de Andrade Jr. tanto como roteirista, onde mostra uma grande capacidade de escrever a história relativamente longa de uma família, mantendo-a instigante, quanto de diretor, que se revela na excelente composição quase mosaical do filme, escolhendo com cuidado as cenas a acompanharem a narração.
Para alguns, pode ser surpreendente a qualidade para um primeiro longa, mas devemos observar que Carlos Porto de Andrade Jr. já tem uma vasta carreira no mundo dos curtas-metragens.
Se há algum problema em “Primavera” é que ocasionalmente o excesso de personagens, narrativas sobrepostas, e a falta de uma imagem literal dos ocorridos pode torna-lo ligeiramente confuso. Por sua vez é um elemento proposital, não só para exigir a plena atenção de seu espectador, bem como para expor a ideia de que a narrativa histórica não é tão clara quanto gostariam que fosse.
Talvez para alguns fãs de história, “Primavera” não seja a melhor opção, dado que evita uma narrativa verossímil da história. Porém para aqueles que se interessam por títulos ricos em detalhes, com tramas complexas, e que retratam a história como ela é – uma sucessão de fatos sobrepostos entrelaçados de maneiras quase nunca claras – é certo que o longa agradará.
por Ícaro Marques – especial para A Toupeira
*Título assistido via streaming, a convite da 02 Play Filmes.