Em geral, uma obra cinematográfica deveria ser avaliada por si mesma. Só em alguns casos pode-se vinculá-la a fatos acontecidos, principalmente na História – com páginas muitas vezes confusas ou de interpretação polêmica. De todas as maneiras, isso não definirá sua exatidão com esses fatos, nem sua qualidade cinematográfica. Porém, no caso de “Prisão nos Andes” (Prison in the Andes / Penal Cordillera), parece impor-se uma breve síntese do sucedido no Chile faz alguns anos para entendê-lo melhor e, depois, abordá-lo.
Resumindo: depois de um violento golpe de Estado, a ditadura militar encabeçada pelo General Pinochet governou o Chile desde 1973 até 1990, ou seja, durante 17 anos. Nesse período, em especial nas primeiras etapas, foram sequestradas e assassinadas sem juízo prévio milhares de pessoas acusadas ideologicamente.
Pinochet, com momentos irônicos que o caracterizaram, dizia que a sua era uma “ditabranda” (não ditadura). Contudo, testemunhas diretas e extensas e comovedoras listas de desaparecidos ou mortos pelo regime, desmentem tal afirmação. Os responsáveis foram, em primeiro lugar, esse presidente ‘de fato’ – e não de direito, via eleições democráticas -, porque, também segundo suas próprias palavras: “No Chile não se move uma folha sem que eu saiba”.
A seguir, os outros dois chefes militares (da marinha e da aviação) e o diretor da DINA, a polícia secreta do governo, atualmente culpada pela morte de aproximadamente 1.500 pessoas. Sem esquecer militares de patentes menores e, inclusive, policiais (‘carabineros’) e civis.
Este é mais um título cinematográfico chileno que tem esse assunto como centro. Alguns que já o fizeram foram “Chile, la memoria obstinada” (1997), “Fernando ha vuelto” (curta-metragem, de 1998), “El caso Pinochet” (2001), “No!” (2012), “El Club” (2015), “El pacto de Adriana” (2017), “Matar a Pinochet” (2020) e, especialmente, “La batalla de Chile” (1975-1979), excepcional documentário cuja câmara foi realizada por Jorge Müller, a quem é dedicado post-mortem Prisão dos Andes, e à sua namorada, Carmen Bueno, na mesma condição. Diga-se de passagem, vários desses filmes foram dirigidos idoneamente por novatos.
“Prisão nos Andes” se ocupa de um período posterior à ditadura, e tem foco em cinco militares de alta patente. Julgados, com fiscais, defensores e juízes, foram condenados à prisão por crimes de lesa-humanidade. A trama situará o relato dizendo que “a 40 anos do golpe de Estado de Pinochet homens a cargo de crimes de lesa-humanidade, cumprem suas sentenças de séculos de cárcere aos pés da Cordilheira dos Andes”.
As sequências iniciais podem produzir uma relativa surpresa já que se vê a tais detentos gozando de muitas regalias, em um local especial dos Andes e sendo muito bem cuidados: uso de celulares,, compra de livros solicitados por eles mesmos, prazeres diversos. Um dos reclusos dirá: “Isto não é uma cárcere. É um lugar feito para nós, oficiais do Alto Comando do Exército de Chile”. Deve-se acrescentar uma permanente prepotência arrogante no trato aos demais. Não sem razão, cada um dos elementos que aparecem podem originar certa indignação ética nos espectadores.
Nas falas dos personagens aparecem evidentes contradições. Por exemplo, o General Contreras (Hugo Medina) diz: “Nunca matei ninguém. Nunca torturei ninguém”. Todavia, entrou para a história como responsável da mencionada DINA, sendo muito próximo a Pinochet. Pouco depois, ele mesmo e outro personagem dirão: “matamos a todos os comunistas”. Sob a justificativa de que o país não seja invadido por “negros, traficantes, homossexuais, terroristas” e que “não duvidaria em fazer tudo de novo”. Desse modo, o título traz características decididamente ideológicas. Cabe a cada espectador tirar suas conclusões e ter, eventualmente, uma posição ante o relato e diante desta página da história.
A propósito do anterior, o percurso cinematográfico acompanhará, de alguma maneira, os fatos acontecidos historicamente: a situação dos condenados vai piorando de maneira gradual, pois perderão alguns benefícios e, finalmente, por disposição oficial (o que aconteceu em 2013), serão transladados a Punta Peuco, outra prisão, similar às demais, que recebem presos por delitos comuns.
Aos poucos “Prisão nos Andes” muda a narrativa dando lugar a momentos de suspense e situações policiais, incluindo acusações, vinganças cruéis e mortes violentas. Os créditos finais serão fechados com uma advertência escrita sobre sua condição de ”obra de ficção e criação artística (…) que não pretende formular uma identificação estrita com pessoas reais”. Mas, até neste comentário, como já foi dito, resulta muito difícil não traçar um paralelo com o acontecido no Chile, antes e depois do golpe militar.
Sem grandes pretensões técnicas, supera alguns elementos desconexos e cenas com toques ridículos, longamente compensadas por seu caráter dramático, inclusive pelo conjunto da obra, dirigida e roteirizada pelo debutante em cinema, Felipe Carmona Urrutia. Destaque para o elenco, atores experientes, com antecedentes em vários títulos, bem conhecidos no Chile.
Obra intensa, para ser analisada com certo cuidado por público que queira caminhar por uma estrada dura e, provavelmente, aproveitável em vários sentidos – histórico, ideológico e psicológico.
por Tomás Allen – especial para A Toupeira
*Título assistido em Cabine de Imprensa Virtual promovida pela Retrato Filmes.