Explorar surtos de raiva e desespero em tramas cinematográficas não é uma grande novidade, afinal, questões como problemas emocionais e sociais que afligem a maioria das pessoas na vida adulta têm sido um tema bem comum para aqueles nascidos entre o século XX e XXI. E é inegável que a pandemia causada pelo Corona vírus, que assola o mundo desde 2020, tenha agravado muitos quadros relacionados a patologias psicológicas, deixando milhares de pessoas à beira de um estado de surto.
Talvez seja justamente por isso que o filme “Surto” (Surge) cause certa empatia ao apresentar um protagonista com nítidos problemas psicológicos, mas sua condição não parece tão descolada da realidade quando comparamos com o triste momento que vivemos atualmente.
Na trama acompanhamos Joseph (Ben Whishaw), um segurança de aeroporto claramente incomodado com a vida que leva. Em seu lado profissional, testemunhamos o protagonista lidar com pessoas de todos os tipos diariamente, em geral o trabalho parece monótono, porém vez ou outra, ele confronta situações que o levam ao limite da calma.
Já em sua vida pessoal, sente-se constantemente diminuído e humilhado pelo seu pai, enquanto sua mãe tenta mimá-lo, mesmo que de maneiras deveras incômodas. Vivendo uma rotina que o coloca no limiar da sanidade, a narrativa nos conduz a um dia atípico na vida desse personagem, onde o mesmo surta e começa a quebrar todas as regras e limites impostos pela sociedade, muito mais como uma forma de libertação do que de fato como uma ação consciente.
A história se passa em Londres, um local cosmopolita e, assim como outras várias metrópoles presentes ao redor do planeta, um lugar com milhões de pessoas vivendo aglomeradas, e ainda sim, com potencial para fazer pessoas em estado de fragilidade mental se sentirem solitárias em meio à multidão.
Essa sensação é constantemente transmitida pelo filme, de forma sutil. Aliás, essa sutileza presente na película só é possível pela primorosa atuação de Ben Whishaw no papel principal, pois a instabilidade do personagem vai aumentando gradativamente: isso fica nítido para o público graças aos tímidos comportamentos peculiares de Joseph que vão pouco a pouco se intensificando com o decorrer da trama.
Um dos aspectos que pode se mostrar incômodo a alguns amantes de cinema é a escolha do diretor Aneil Karia (que também assina o roteiro junto a Rita Kalnejais e Rupert Jones) de utilizar a controversa câmera tremida em várias cenas, em partes para dar dinamismo a narrativa, mas também acaba sendo um artificio válido para representar a falta de estabilidade emocional do protagonista. A estética como um todo funciona, mas em alguns momentos que o diretor perde a mão do artifício, acabam causando certo desconforto e até mesmo confusão nos elementos presentes em tela.
“Surto” pode até apresentar uma temática bem recorrente na cultura pop, mas ainda assim, brilha ao trazer esse tema justamente quando o mundo todo discute saúde mental após um dos momentos mais delicados da história da saúde mundial.
Muitos acreditam que é natural a arte refletir o período histórico em que foi concebida, e partindo dessa lógica é seguro afirmar que esse suspense dramático está na vanguarda, pois o trauma do isolamento mundial foi tamanho, que não me surpreenderia que estejamos testemunhando uma nova leva de filmes com temáticas relativas à saúde mental, ou às consequências de negligenciá-la.
por Marcel Melinsk – especial para A Toupeira
*Título assistido em Cabine de Imprensa Virtual, a convite da Synapse Distribution.
**Disponível para compra e aluguel nas plataformas digitais Claro Now, Vivo Play, iTunes/Apple TV, Google Play e YouTube Filmes.