Confesso que ao saber da duração de “Tár” (158 minutos), me peguei pensando se a sempre celebrada atuação de Cate Blanchett seria suficiente para sustentar a cinebiografia de uma maestrina. Ainda mais quando soube que tal figura nem mesmo era verdadeira: descobrir que Lydia Tár é uma personagem fictícia me chocou no mesmo grau que a revelação de que “A Bruxa de Blair” (1999) não se tratava de um documentário real.
A boa notícia é que desde sua sequência inicial, em que a protagonista dá uma (extensa) entrevista, durante a qual faz uma excepcional colocação sobre o tempo e sobre a opção por não ler nenhuma crítica feita a seu respeito, fica claro que a obra dirigida e roteirizada por Todd Field terá muito mais a oferecer ao público, incluindo um texto de qualidade irretocável.
A trama se passa primordialmente na Alemanha, onde Lydia Tár (Cate Blanchett) vive com sua companheira e primeira violinista, Sharon (Nina Hoss), e a filha Petra (Mila Bogojevic). Uma das quinze artistas ao conquistar o EGOT, a renomada compositora torna-se a primeira mulher a estar à frente da Orquestra filarmônica de Berlim.
Com uma autoconfiança aparentemente inabalável, prestes a lançar sua autobiografia e reger uma das peças com maior influência em sua carreira (a Quinta Sinfonia de Mahler), ela consegue sustentar sua imponente figura dentro e fora dos palcos com uma fluidez notável.
Mas é diante dos músicos que a maestrina se transforma em uma força da natureza, com sua assustadora naturalidade de condução e uma competência que justifica o reconhecimento de seu brilhantismo na longeva carreira. É fácil acreditar no que vemos em tela, quando nos pegamos diante de cenas que emulam ensaios para a apresentação máxima da orquestra. Como bem diz a sinopse oficial, “Cate Blanchett é Tár”.
Tudo estaria no tom perfeito, não fosse um fantasma presente na vida de quem tem acesso ao mundo virtual: a cultura do cancelamento. É através dela que acompanhamos a crescente derrocada da personagem, após vários acontecimentos que colocam sua integridade moral em risco, o que também significa a possibilidade da perda de um prestígio profissional conquistado através de anos de dedicação.
Seja durante um (provavelmente encarado por muitos como polêmico) discurso durante uma aula ministrada na Juliard School, em Nova York, ou pela decisão de apagar rastros de contatos prévios com uma ex-aluna – a misteriosa Krista Taylor, que se torna uma espécie de perseguidora, após, supostamente, ter problemas pessoais com Tár, que acabam sendo grandes empecilhos para seu avanço no mercado da regência – há vários pontos que podem gerar debates e reflexões após o término da produção.
De forma bastante visceral, a narrativa mostra o quanto comentários, declarações (verídicas, ou não) e realidades moldadas de acordo com interesses pessoais podem ser nocivos e corroer bases que parecem sólidas até serem confrontadas com o pior da natureza humana.
E faz tudo isso sem forçar o espectador a comprar qualquer uma de suas ideias, deixando em aberto a possibilidade de cada um defender o que lhe parecer mais adequado (o que merece aplausos, já que nos dias atuais, quase tudo nos é empurrado goela abaixo).
Como já era de se esperar de um filme que tem a música como um de seus principais alicerces, a trilha sonora é quase um elemento à parte. Além de belíssimas peças clássicas – que seguem atemporais e maiores do que qualquer assunto além de sua qualidade musical, também há o primoroso trabalho da compositora Hildur Guðnadóttir, que, mais uma vez, entrega um resultado marcante.
Talvez seja impossível definir “Tár”, que chega aos cinemas brasileiros com seis indicações ao Oscar e vários prêmios já conquistados na bagagem. Mas é fácil imaginar que ele deve atingir o grande feito de ser lembrado por muito tempo.
por Angela Debellis
*Título assistido em Sessão Regular de Cinema.