Crítica: “A Esposa”

O filme apresenta a história de um casal onde o marido (Jonathan Pryce) é um escritor de sucesso que recebe o Prêmio Nobel de Literatura. A mulher (Glenn Close) parece preencher os requisitos da famosa frase: “Por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher”. Mas, neste caso, o assunto é mais complicado ainda.

Há um detalhe que aparece na cena inicial – uma cena de cama – para dormir e para ter relações sexuais – que nos fornece o que poderia ser uma pista básica sobre esse casal protagonista: a mulher usa aliança, mas o homem não. E esta presença/ausência do símbolo oficial do matrimônio continua ao longo do filme. Como todo símbolo, pode ser muito significativo.

O ser humano é complexo, mas as relações entre os humanos são ainda mais complexas. Sobre estas últimas se ocupa “A Esposa” (The Wife). Em especial do vínculo matrimonial, mas também das relações entre pais e filhos. O enredo se faz de um modo bastante elaborado, mostrando as idas e voltas, as ações e omissões e também as constantes que se produzem ao longo de 40 anos de relacionamento.

Desenha um perfil de personagens bem adentrado psicologicamente, quase sem utilizar palavras rebuscadas ou próprias da linguagem mais específica, nem de modo estrito nem de uso mais cotidiano. Ou seja: ninguém é acusado de “psicopata”, “bipolar”, etc. Apenas o escritor protagonista, de ter uma conduta “compulsiva” e ser “narcisista”.

E isto último, além de ser dito explicitamente, se reforça com o nome do personagem: Joe Castleman – J. “Homem do Castelo”, em português. E qual outro poderia ser o castelo se não seu próprio caráter ensimesmado…?. Um homem equivocadamente apaixonado de si, como Narciso, que não admite críticas, que está fechado dentro de seu castelo.

Por isso, outro personagem algo cínico, mas bom conhecedor de debilidades (bem interpretado por Christian Slater) explica que Castleman é um reiterado infiel do compromisso matrimonial, não por culpa de sua esposa; mas por si mesmo, por compulsão.

No percurso cinematográfico há uma descrição de caracteres detalhada, que evolui apresentando um lado bastante escuro, destrutivo, porém eventualmente necessário para poder dar lugar a outros aspectos, os criativos. Isto é: um matrimônio que se converte em um vínculo muito nocivo para assim poder dar esplendor intelectual e social só a um de seus integrantes.

Pelo título – “A Esposa” – já se pode deduzir que a mulher aqui é uma figura de segundo plano. Talvez esta mesma interpretação dá-se porque nossa cultura, em particular a ibero-americana, nos leva a pensar algo como: ‘esposa’… é a esposa de algum homem. (Ao passo que ‘esposo’ não parece ter o mesmo significado conotativo de marginalizado, dependente do outro).

Esse conflito mais ou menos trivial ou habitual, no filme não apenas aparece e se confirma. Além disso, se intensifica: há um aprofundamento peculiar e muito forte dessa desequilibrada relação.

Para descrever todo este complicado quadro se conjugam uma previsivelmente boa atuação da veterana e ganhadora do Globo de Ouro, Glenn Close e o roteiro de Jane Anderson, baseado no romance de outra mulher, Meg Wolitzer, interessada no refletir social, psicológico e até filosófico da trama e seus personagens.

Como exemplo, a citação de Meditações do Quixote: “Eu sou eu e minha circunstância”. Ou um diálogo sobre literatura:

– Um escritor deve escrever – disse a jovem protagonista, repetindo o que aprendeu de seu sedutor professor;

– Um escritor deve ser lido – lhe responde uma cética conhecedora do ofício-profissão de escrever e publicar.

Porém, nas citações que o protagonista faz, há outra dimensão: quando tenta impressionar alguém – especialmente na conquista de mulheres – sempre menciona o famoso autor irlandês James Joyce. Não é apenas uma técnica reiterada, da mesma maneira que faz gravando mensagens em uma noz. Também evidencia falta de criatividade no sentido que não se cita a si mesmo – supostamente consagrado e ganhador do Nobel. Em lugar de isto ser entendido mais que como indício de humildade, não será uma evidência que não tem ideias próprias, uma vez que ele mesmo é uma fraude?

Com relação a outros aspectos da obra, além de Glenn Close e o roteiro, deve-se ressaltar a qualidade de diversos itens técnicos onde podemos enumerar o primoroso figurino (de Trisha Biggar) e a arte (vários participantes), apropriados para o elegantíssimo ambiente da realeza sueca. Também sobressai a muito cuidadosa fotografia de Ulf Brantás.

A sóbria música de Jocelyn Pook (conhecida pela impactante “De Olhos Bem Fechados” – de 1.999 -), alternada com fragmentos clássicos, e o ambiente do inverno sueco dão um tom fechado que reforça a reflexão e introspecção. A mise-en-cène no palácio onde se entrega o Prêmio Nobel e o fastuoso salão onde acontece a ceia de honor resulta excelente.

Parágrafo a parte para Annie Starke, filha de Glenn Close e do produtor John H. Starke, a bela atriz que representa uma fotógrafa. Essa mulher vai se aproximando do escritor e também tem uma atitude sedutora, de igual índole que a atual esposa teve anos antes com este mesmo homem, quando estava casado. Curioso jogo de simetrias ou proximidades, dentro e fora da ficção.

A propósito de ficção: obviamente não há nada que, em princípio faça referência aos reais ganhadores do Nobel de Literatura. O mais curioso é que no ano 1.993, uma das épocas nas que transcorre “A Esposa”, a premiada pela Academia Sueca foi uma escritora negra – talvez procurando contrapor-se assim a qualquer interpretação que essa organização fosse machista nas suas premiações. Porém, nada de isso aparece no “A Esposa”.

Também não existiu um Prêmio Nobel de Física com o nome James Finch. Mas sim uma Universidade Smith, para estudos artísticos, com uma aluna mulher, como são mencionados no relato. São parte das chamadas “licenças poéticas”. E tudo isto foge do filme em si e não interessa para desfrutá-lo e avaliá-lo. A criatividade artística pode respeitar ou alterar dados históricos, geográficos, biográficos, etc. Isso não a faz maior ou menor, melhor ou pior.

O mesmo sucede com o dado que Connecticut seja a cidade onde mora o casal do longa, a mesma onde nasceram Glenn Close e sua filha, Annie. Ou que a edição seja de Lena Runge, igual sobrenome que o diretor (Björn Runge).  Simplesmente mencionamos aqui para enfatizar que analisar uma obra cinematográfica implica preferentemente focar-nos nela mesma. E em eventuais antecedentes cinematográficos, paralelismos, etc., mas não no que se refere a dados externos.

“A Esposa” é um drama denso, cuidadoso no técnico e que pode ser bem recebido por público que se sinta atraído por aspectos da complexidade humana.

por Tomás Allen – especial para A Toupeira

Filed in: Cinema

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