Crítica: “Cine Marrocos”

“Maldito é o homem que confia em outro homem”.

Sabemos que um filme não se julga apenas por uma frase, por uma citação bibliográfica, bíblica no caso. Aos dois minutos de iniciada a exibição aparece esta afirmação. No entanto, o personagem que a diz adverte ao espectador que não confie nele.

E, como dá a citação exata, quem anota ou tem boa memória, vai ao Velho Testamento da Bíblia para conferir. Não vamos revelar o resultado, porém o jogo resulta instigante. Cine Marrocos” inicia-se assim, e continua desse modo, pelo menos durante uns 20 minutos.

No local onde havia funcionado o cinema desse nome e que fora um ponto de referência da exibição em São Paulo, no presente do relato (ano 2013) há uma invasão de moradores de rua, sem teto.

As figuras são excêntricas, tanto ou mais que aquele apresentador inicial. Desalinhadas, com vestes humildes, sem margem para cuidados nas próprias aparências. Pobres, marginais, diferentes.

Então, lá dentro daquele antigo, e agora abandonado, cinema, eles são convidados a ter aulas de interpretação. As mesmas tentarão aproximar-se do cinema, tendo como base cenas de filmes antigos, daqueles qualificados como clássicos, como “Crepúsculo dos Deuses”, “Júlio César”, “Pão, Amor e Fantasia” e “A Grande Ilusão”.

Também está a presença de alguns personagens famosos como Erich von Stroheim e alguns atores e atrizes com destaque naqueles anos. Além disso, aparecem noticiários, mostrando imagens de franceses, japoneses e estadunidenses, que estiveram presentes em evento internacional realizado no próprio cinema, em 1954.

Resulta também interessante a simultânea apresentação de diversos moradores, contando momentos ou definindo as características de suas vidas. Algumas, marcadas exclusivamente pelo sofrimento, amplitude de opções na sexualidade ou a procura ao estar lá para apenas se divertir com essas representações.

Porém, as atuações vão deslocando-se do cinematográfico para o teatral. Prevalecem os diálogos e até os monólogos. E o próprio filme vai também perdendo sua condição inicial. Passa a ser menos cinema e mais teatro. Perde, assim, seu rumo.

Uma última virada acontece no relato: a intervenção do poder público com decisões judiciais e intervenção da polícia para garantir o despejo dos invasores.

Podem ser mencionados os trabalhos de Ivo Mülher (como o apresentador/preparador de atores nessa ficção) e de Jordana Berg, editora que une imagens de arquivo como o fio principal.

Assim, “Cine Marrocos” resulta irregular, mas é um passeio nostálgico pelo que foi uma época dourada do cinema internacional ecoando em São Paulo. E aquela sentença citada no início resume o melhor da obra.

Com estas características básicas, roteiro e direção de Ricardo Calil, feito em 2018, ganhou diversos prêmios em festivais de títulos documentários.

por Tomás Allen – especial para A Toupeira

*Título assistido via streaming, a convite da Bretz Filmes.

Filed in: Cinema

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