Crítica: “Bagdá Vive em Mim”

Como se radicaliza uma pessoa? Como alguém se torna tão extremo ao ponto de cometer atrocidades em nome de uma religião, país ou raça?

Alguns diriam que é a mais pura doutrinação desde jovem, no entanto, não podemos nos ater a este pensamento. Existem vários fatores que compelem alguém ao fanatismo seja qual for, porém o principal deles é o condicionamento social: para pessoas que se veem sem rumo, ou quando têm tantos problemas que não se dá para perceber a causa – em particular de raízes sociais –, é fácil para que um pregador surja, e lhes aponte um caminho, uma justificativa, um inimigo, radicalizando os indivíduos em pessoas irreconhecíveis capazes de atos monstruosos.

Naseer (Shervin Alenabi) era um bom garoto, um refugiado iraquiano morando em Londres com sua mãe viúva, e sonhava em ir para a faculdade. No entanto, após um ataque por skin heads, suas atitudes começam a mudar, e ele se vê influenciado por um pregador hipócrita, que, enquanto crítica o ocidente e sua devassidão, tem um hard drive carregado de pornografia.

Por sua vez, o tio do jovem não poderia ser mais oposto: Taufiq (Haitham Abdel-Razzaq) é um comunista que fugiu do Iraque, não pela invasão americana, mas por ser perseguido por seus ideais. Ele e seus antigos compatriotas exilados, dentre eles Amal (Zahraa Ghandour) – que fugiu do violento marido, e Muhannad (Waseem Abbas) – que se exilou por ser homossexual, se reúnem no café Abu Nawas, um lugar onde podem se sentir de volta na capital de seu país natal, Bagdá.

Um dia, no entanto, tudo mudará para os frequentadores do café, quando este é atacado por radicais, um ataque que fará com que Tauriq tenha seu mundo virado de ponta cabeça.

Esta é a trama de “Bagdá Vive em Mim” (Baghdad in My Shadow) do diretor suíço-iraquiano Samir, que explora a radicalização de um indivíduo, as tristezas do exílio, as sutilezas do racismo e da homofobia, e como a realidade pode ser mais complexa do que realmente aparenta.

O filme, apesar do apelo dramático, é uma mistura de drama com suspense, onde observamos o desenrolar de toda história da investigação do ataque ao café Abu Nawas, durante o interrogatório de Taufiq. Isto faz com que a história não fique presa ao convencional, dando vazão a uma trama mais dinâmica do que um simples drama comum.

Esta mistura é algo interessante, porém como comum neste tipo de produção, acaba por desfavorecer um destes dois estilos, e neste caso em particular, é o thriller: ainda que a trama tenha elementos que sustentem a tensão, não é o mistério desta que os causa, mas o drama social e entre os personagens.

Falando em drama social, “Bagdá Vive em Mim” tem uma condução consideravelmente bem pensada deste: por seu diretor e roteirista ser iraquiano vivendo na Europa, ele consegue trazer muito à tona os conflitos culturais, particularmente do racismo casual – como pequenos comentários que aos que não são da raça depreciada não percebem que são racistas – e da homofobia interiorizada – um pai que mesmo sendo liberal tem dificuldade em aceitar o fato do filho ser gay/bi – e até mesmo do machismo ainda presente em sua cultura, mesmo entre os que desapegaram da religião mais radical – tanto Amal quanto a mãe de Naseer escutam continuamente de outros mais liberais que deveriam arranjar um marido, mas iraquiano/árabe e não ocidental.

O longa também consegue captar muito bem a radicalização de um indivíduo, mostrando como se disseminam os discursos que corrompem uma pessoa a se tornar um monstro, enquanto observamos Naseer ter sua raiva – contra o racismo que sofre e contra a sociedade que ele supõe culpada por suas dores – explorada por um pregador, que, como típico dos doutrinadores, prega uma coisa enquanto pratica outra.

Outro elemento que chama atenção no discurso do pregador é sua semelhança com certas correntes cristãs: a imposição religiosa ou pelo menos de seus costumes sobre os demais, o machismo exacerbado, o ódio a todos sem religião e homossexuais. É fácil perceber que mesmo os cristãos mais radicais não são muito diferentes dos islâmicos fanáticos, e que o que os diferencia é sua religião.

Por fim, “Bagdá Vive em Mim” é um filme cheio de meandros sociais, explora vários temas sem se tornar entediante. O mistério da trama pode não ser o melhor conduzido, mas com certeza o resto se sustenta muito bem.

por Ícaro Marques – especial para A Toupeira

*Título assistido via streaming a convite da Arteplex Filmes.

Filed in: Cinema

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